quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

O desejo de filho na formação do vínculo mãe bebê

                                  Katya de Azevedo Araújo
                                   Mara Horta Barbosa
                                   Maria Isabel  Ribas Pacheco
                                   Patrícia Poerner Mazeron
                                   Renata Viola Vives

Para Freud (1917,1925, 1931, 1933) o desejo de filho na menina surge através de uma longa série de substituições, comandadas pela inveja do pênis. O filho surge como um substituto simbólico de pênis, na equação pênis-bebê, através de diversas permutas no marco do erotismo anal: do pênis ao bebê, das fezes ao bebê ou do presente ao bebê. Estamos no campo das fantasias de desejos infantis que o adulto conserva e que o inconsciente, atemporal, mantém.

Dolto (1984) seguindo Freud, afirma que é somente após a maternidade efetiva que a sexualidade feminina está em condições de alcançar a plena resolução do conflito edípico, o luto do narcisismo fálico de seu corpo e de seu sexo, o abandono de sua posição homossexual e o investimento do seu corpo no parceiro.

Caso clínico (dados da paciente preservados)

Demonstra baixa tolerância às frustrações considerando o fato de não conseguir engravidar uma falha narcísica que “dói na alma”. Pensamos na relação com sua mãe que foi desde o início tão pobre de investimentos, já que não foi o filho homem desejado. Márcia sente que é a marca da frustração, quando não é o filho homem desejado pelo casal. Quando consegue realizar seu sonho de engravidar, enfrenta isto com muita dor e rechaço. Seu sofrimento aponta para  uma fase precoce de vida, lembrando que os autores mencionam que a fertilidade e a maternidade têm sua raiz na relação ambivalente com a mãe. Percebe-se o desejo de maternidade e não por filho, segundo  Aulagnier (1979) que é a tentativa de se fusionar, de uma relação narcísica e não objetal, em um retorno ao passado, à sua relação indiferenciada com a mãe.

O desejo de maternidade, como nos coloca Aulagnier (1979)  significa o desprazer de estar sempre arriscando perder a criança, diferente do prazer de ter a criança. O desejo de maternidade é a negação de um desejo pela criança, é um desejo de reviver, em posição invertida, uma relação primária com a mãe, desejo que excluirá do registro dos investimentos maternos tudo o que se refere à origem da criança; ela ( a criança) não pode ser vivida como um ato de criação, mas sim como uma repetição de um momento vivido por sua própria mãe num passado longínquo e onde a expectativa seria a de retorno a um tempo que lhe era próprio.

Além  do que  nos coloca Freud sobre a maternidade e o desejo de filho, como uma das saídas para a sexualidade feminina e resolução da conflitiva edípica, senão a melhor forma possível  de resolução na visão Freudiana, outros autores, sobretudo as psicanalistas mulheres como Ruth Mack Brunswick, Helene Deutsch, Melanie Klein e Karen Horney, enfatizam a importância da relação precoce da menina com a mãe pré-edípica. 

Assim, o desejo de filho provém também da vertente homossexual da relação mãe-filha. E mais, apontam que todos os distúrbios apresentados pela mulher ligados a sua sexualidade, fertilidade e maternidade tem uma raiz importante na relação ambivalente precoce com a mãe, sobretudo ao que se refere às frustrações orais sentidas pela menina na relação com a mesma. 

Segundo Soulé (1987) o fantasma mais antigo da criança (menino ou menina)  é obter o poder de ter um filho, o poder da mãe.  Este é um dos componentes do  desejo de gravidez e não do  desejo de filho. Não está ligado ao desejo de ter uma criança, mas sim ao poder “fazer” a criança, e então identificar-se com a mãe, na sua plenitude e poder absoluto.  Eis aí o impacto traumático da esterilidade. O filho poderia ser conseguido pela inseminação artificial ou adoção, mas não o poder de “fazê-lo” por si mesmo. Isso parece ficar evidente no caso de Marcia, que sempre se imaginou tendo um bebê, mas sem imaginar-se casada, entretanto, quando se vê “gorda”, cheia, isso causa uma angústia tremenda e uma estranheza.

A mulher grávida reedita a relação ambivalente com a própria mãe. Helene Deutsch, citada por Langer ( 1986 )  interpreta isso como uma dupla identificação, onde a grávida pode identificar-se com o feto, revivendo sua própria vida intra-uterina, ou pode também projetar sobre ele sua própria voracidade oral infantil e desejos de comer a mãe, vivenciando assim o feto como algo que irá destruí-la por dentro. Quando o feto representa sua mãe, cuja vingança oral teme, ele é experimentado como algo angustiante e destruidor que carrega dentro de si.

  Em um primeiro momento a menina quer destruir o corpo da mãe, sobretudo seu ventre e conteúdos.  Num segundo tempo, a menina quer menos destruir, mas deseja sim um roubo dos conteúdos do corpo materno, o pênis do pai e bebês, guardando um filho para si. O desejo de destruir – roubar os conteúdos do corpo materno reaparece com o desejo de gravidez, com o desejo de ficar cheia e gorda. Trata-se de verificar a integridade de seu próprio interior.  A prova deste desejo de destruição é dada pelo aparecimento de temores de vingança ao final de uma gravidez, quando a realização do desejo torna-se próxima. No medo de tantas mulheres de darem à luz a um bebê anormal, elas expressam o quanto imaginam terem sido monstruosas suas próprias fantasias exigentes frente à mãe. Assim, no desejo de gravidez, está também implícita uma verificação de sua integridade corporal, ameaçada pela retaliação materna.

             Podemos pensar que quando Márcia não mantém a gestação, vive esse momento como um profundo fracasso, confirmando sua “falha-castração narcísica”. Duvida de sua integridade corporal, o que a remete a retaliação materna, e ao poder da própria voracidade oral.

Langer (1986) afirma que há mulheres que alcançam a maternidade de modo muito conflituado. Estas estão em conflito com sua feminilidade e expressam um predomínio do funcionamento esquizo-paranóide, onde abrigar o pênis e feto dentro de si significa um roubo à mãe e triunfar sobre ela, o que implicaria castigo e retaliação. Para fugir disto, a saída pode ser a frigidez, infertilidade ou abortamentos.  Outras mulheres alcançam a maternidade de maneira menos conflituada. Nestas encontra-se um predomínio da posição depressiva, com o desejo de reparação através da própria gravidez e parto felizes. Reparam a mãe e devolvem-lhe o roubo, através de um filho sadio, e dão fé, desta maneira a própria bondade, tolerância e a própria integridade corporal.

Seguindo no caminho da sexualidade feminina  nos encontramos com Maria, casada com João e querendo muito ter  um filho. Há alguns anos tentam naturalmente engravidar sem sucesso. Maria deseja ter um filho com João, pois este é adotado e não tem nenhum conhecimento de sua família de origem, então se eles tivessem um filho seria uma maneira de João ter um laço de consangüinidade com alguém que convivesse com ele. Certamente este filho já viria com uma missão, dando ao pai o laço perdido e desconhecido. Quanto mais Maria deseja dar este filho a João para constituírem sua família, mais ansiosa fica e percebe que esta ansiedade pode lhe prejudicar no seu intento. Busca tratamento como mais uma forma de auxílio na realização de seu sonho. Passam-se dois anos e como não consegue engravidar pelo método natural e já tem 38 anos busca uma clínica de fertilização assistida. O casal gasta neste procedimento mais recursos que poderiam, mas consideram que valeria o investimento. Na sua primeira tentativa de reprodução assistida Maria não tem sucesso e resolvem angariar recursos para uma nova investida neste projeto de vida do casal. Fica a pergunta: qual o papel do filho no imaginário deste casal? Que mandatos ele terá, carregado de tamanho investimento? Como irá se formar a relação mãe-bebê?

Fiorini (1999) enfatiza a necessidade de diferenciar nessas situações o amor narcisista, que não reconhece o filho como objeto, nem reconhece sua alteridade, de um amor objetal que permitiria a discriminação do outro.

O filho imaginário é investido de uma grande projeção narcísica pela mãe. Ele é um outro -ela mesma -ideal, um filho cuja clivagem retirou todos os componentes agressivos. Realizará toda a megalomania infantil de sua mãe. É a ela que retorna todo o poder que ela lhe concebe. É um objeto psíquico, está dentro da cabeça e não no ventre. Ele é inatacável.  É o filho de um casal mãe-filha por pensamento mágico. Aqui encontramos novamente a idealização como papel defensivo contra as pulsões destrutivas.

O filho real, o recém–nascido, evoca na mulher a problemática da castração, do conflito edipiano.  A despeito de todos os seus cuidados com o bebê, é ele que decide sobre viver ou morrer. Desmente, nesta autonomia, o poder materno de fabricar um filho. O bebê não é um prolongamento seu. Agora com o feto deixando o corpo da mãe, joga-a numa posição de Mãe. Ou seja, ela arrisca ser todo o passado de sua mãe. Tornar-se tudo contra o qual outrora foi combativa. O recém-nascido, ou filho real, não vai ser mais que uma cópia decepcionante do bebê imaginário. A mãe deve então fazer um luto do filho imaginário, sob a pressão do filho real, podendo elaborar ou não arranjos patológicos.

Para Goldstein (2000) a mulher necessita realizar um duplo trabalho psíquico: castrar a mãe fálica pré-edípica, conseguindo finalmente, reconhecer a mãe como não toda e correlativamente, sustentar em si mesma os efeitos dessa operação de separação que funda a experiência subjetiva de sua própria incompletude. Quando ocorrer o parto e a necessária e crescente separação do bebê, pela ruptura da díade inicial, deve aceitar o apoio que é a presença do homem – pai, o que consolida nela efeitos  psíquicos de castração simbólica.

“Como filho, esse ser é recém então um outro a ser descoberto, situação de enormes consequências estruturantes para ambos.” ( Goldstein, 2000, p. 103)

“A transmissão da vida escapa completamente ou parcialmente àqueles que a transmitem. Os pais que dão a vida são eles mesmos portadores de marcas significativas que serão transmitidas sem seus conhecimentos no mesmo estilo do sopro biológico.”(Monique Bydlowski in: Soulé, 1987)

    Para concluir, podemos pensar que existem várias variáveis que colorem o chamado “ desejo de filho”, passando elas pela ordem fálica freudiana, como solução para a feminilidade;  pela revivência do narcisismos dos pais; pela relação fantasmática com a mãe pré-edípica, e pelos mandatos transgeracionais. Há de se examinar minuciosamente as fantasias inconscientes envolvidas em cada caso em particular, de cada indivíduo ou casal que busca gerar natural ou artificialmente ou ainda adotar uma criança, pois estas motivações inconscientes irão definir o desenho da relação que se forma, bem como o papel que este novo ser terá  no romance familiar. Só assim, temos a chance de entender e auxiliar arranjos mais saudáveis que possibilitem aos pais e ao filho que chega, atingirem a subjetividade adulta. 

Bibliografia:

Aulagnier, Piera.  A Violência da Interpretaçao – do Pictograma ao Enunciado. Rio de Janeiro: Imago, 1979.

Freud, S. (1917) As Transformações do Instinto exemplificadas no erostismo anal. Obras Completas.

Freud, S.(1925) Algumas Consequencias Psíquicas da Distinção Anatômica entre os sexos.

Freud, S.(1931)  Sexualidade Feminina. Obras Completas.

Freud, S.(1933) Feminilidade. Obras Completas.  

Glocer de Fiorini, L. Maternidade y sexualidad femenina a la luz de las nuevas técnicas reprodutivas. Revista Psicoanálisis, APA, t. LVI, n. 3, 1999.

Glocer de Fiorini, L. El deseo de hijo: de La carência a La produccion deseante. Revista Psicoanalisis, APA, t. LVIII, n. 4, 2001.

Langer,  Marie. Gravidez e Parto. In: Maternidade e Sexo. Porto Alegre, Artes Medicas, 1986.

Soulé, Michel. A Dinâmica do Bebê. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987.

Zak de Goldstein, R. Destinos de Mulher. In: Erótica –Um Estudo Psicanalítico Da Sexualidade Feminina. Porto Alegre: Criação Humana, 2000


As novas tecnologias de reprodução assistida e a produção de subjetividade

Grupo Pro-Criar: Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 

Katya de Azevedo Araújo

Patricia Mazeron

Mara Horta Barbosa

Maria Isabel Pacheco

Renata Viola Vives 

Atualmente, observamos os diversos avanços tecnológicos na área de reprodução humana, as chamadas reproduções assistidas. Esses avanços, entretanto, têm gerado diversos questionamentos éticos, sociais e culturais em nossa sociedade.

Sabemos que a tecnologia possibilita o crescimento da ciência, trazendo benefícios inestimáveis. A reprodução assistida consiste no manejo de técnicas que possibilitem a casais e indivíduos gerarem os filhos que desejarem ter. Ocorre de forma assexuada, ou seja, a fecundação não se faz através do ato sexual entre parceiros, mas através da manipulação de óvulo e sêmen, que podem ser do casal ou de doadores. Rompe-se a relação natural existente entre fecundação e sexualidade. Resolvemos, portanto, a partir daí, discutir como ficam os conceitos de maternidade, paternidade e filiação. Entendemos que estes conceitos fazem parte de uma construção simbólica, e que a psicanálise pode contribuir enormemente neste processo.

  É inegável que essas novas tecnologias produzem uma assistência àquelas mulheres e homens que não podem ter filhos; por outro lado, a ideia de que toda a mulher precisa ser mãe pode oferecer soluções indiscriminadas, colocando uma ênfase na reprodução como mandato biológico, deixando de lado a maternidade como resultado do desejo. Para Glocer Fiorini (1999) quando falamos em reprodução  assistida lidamos com a ideia de esterilização e com a sombra do desejo do filho.

 Ao longo dos tempos a esterilidade foi considerada um estigma e, apesar de poder afetar a ambos os sexos, tradicionalmente foi atribuída às mulheres, como se o ser mãe fosse uma condição para toda a mulher, como um mandato da natureza e da cultura, tanto no discurso social, quanto um destino fundamental da sexualidade feminina.

 Ribeiro (2004) descreve a infertilidade como um sofrimento silencioso, podendo os casais que passam por essa situação vivenciá-la como algo que os inferioriza diante dos outros, além de uma busca por algo que justifique a infertilidade como um castigo divino, de injustiça. Tal situação gera intensos sentimentos de raiva, culpa e depressão, além de sentimentos de fracasso e vergonha. 

Este irrefreável desejo, que a “natureza” impediu que se  realizasse, encontra uma solução na razão, ou seja, na ciência, que desafia os limites da reprodução humana.

O  indivíduo (ou casal)  procura uma clínica de reprodução humana e encontra a promessa de realizar o sonho de se tornar mãe e/ou pai. Qual problema há nisso? Por que questionar a possibilidade de realização dos sonhos e desejos humanos? A questão não é essa. A questão é o que vem atravessado neste tornar-se mãe e pai, bem como o que este novo ser carrega. O que é transmitido a este bebê?

Em diversos trabalhos Freud buscou mostrar a relevância das fantasias originárias e de toda a questão da origem. Os filhos, produtos do desejo dos pais em parceria com a ciência devem se perguntar com estranheza:  Quem são seus pais? Será que tenho irmãos ou irmãs espalhados por aí?

Para Glocer Fiorini (1999) desde a origem da cultura nunca houve questionamentos acerca do que é uma mãe. Na verdade, a categoria “mãe” sempre foi pouco questionada pela religião, pela filosofia e mitologia. Diga-se de passagem, a figura da virgem Maria, que mesmo virgem manteve plenamente seu status de mãe, mesmo que mantendo em separado as categorias de sexualidade e maternidade. Nesse contexto, a certeza da maternidade sempre se opôs às dúvidas quanto à paternidade. Atualmente, as novas técnicas de reprodução assistida desafiam essas certezas, nos fazendo questionar também o conceito de maternidade.

No início, o ainda casal, começa a formar sua família na fantasia, no desejo, no imaginário. O bebê surge como parte de um projeto. Quando o casal se depara com a impossibilidade de levar este projeto a diante tem que se enfrentar certamente com uma ferida narcísica. Esses casais, conforme Pines citada por Ribeiro (    ), acabam se confrontando com o fato de não poderem gerar/ter filhos como seus pais, sendo necessário elaborar a perda da capacidade de procriação natural. Então, após lamberem um pouco e suturarem essas feridas buscam o auxílio de profissionais especializados capazes de realizar seu sonho. São renovadas as expectativas, criam-se novos sonhos, mas estes podem vir acompanhados de novas perdas e frustrações.  O desejo de maternidade ou paternidade fica embebido desses desgostos e possivelmente esta conjunção de fatores estará presente nos processos de desenvolvimento desta família.

 Assim, podemos nos perguntar: Como se estrutura a fantasmática nesses casais? Para Glocer Fiorini (1999) nesse contexto se faz necessário repensar o desejo do filho.

Afirma  que podem ocorrer alterações no sistema de parentesco e nos modos de filiação, o que implica modificações nos processos de subjetivação, criando um campo impreciso com as novas formas de organização simbólica e, por outro lado,  um borramento da subjetividade. O surgimento dos pais simbólicos faz parte, não só de uma função biológica, o que é transmitido vem atravessado por lutos e perdas. O destino destas crianças e famílias dependerá de como tudo isso será significado neste grupo familiar.

Para Rodulfo (1990),



“... quando nos perguntamos o que é criança, em psicanálise, localizamos certas coisas que denominamos significantes, as quais tem muita relação com a formação dessa criança; porém estas coisas não são necessariamente produzidas por ela, inventadas por ela, nem ditas por ela; ao invés disso, costumamos encontrá-las em lábios e ações daqueles que a rodeiam.” (pg. 25)


Glocer Fiorini (1999) fala em fraturas genealógicas ou filiações quebradas ou alteradas que podem ser  produzidas a partir das novas tecnologias de reprodução assistida. Por exemplo, podemos nos perguntar: quem é a mãe - a que doa os óvulos ou a que gesta? Ou o que se passa no psiquismo de um bebê, filho de um casal homossexual gerado através da doação de sêmen? Como, a partir disso, podemos também tomar a fantasia de cena primária, quando há a percepção e o conhecimento de um “fazedor” externo da vida, de uma cena primária tecnológica, de um ato de engendramento que se dá no exterior do corpo?

A autora enfatiza a necessidade de diferenciar, nessas situações,  o amor narcisista, que não reconhece o filho como objeto, nem reconhece sua alteridade, de um amor objetal que permitiria a  discriminação do outro.

Piera Aulagnier parece sintetizar essas idéias, ao descrever que a maternidade,a  paternidade e a filiação não são aspectos somente biológicos, pois, mesmo antes de nascer já trazemos a marca do simbólico. Nossa identidade muito mais que o nome e sobrenome, é fundada pelo cumprimento das funções materna e paterna. O filho será significado a partir do que lhe foi posto por aqueles que o rodeiam. O lugar na família será possível a partir do lugar que se consigna a uma criança no mito familiar. Independente de como será gerada a criança, é o desejo e o discurso dos pais que define o lugar que o filho ocupará na família e a conjunção desses fatores contribuirá para que o filho conquiste uma adequada estabilidade, sua maturidade psíquica e sexual, o que pode possibilitar seu ingresso na subjetividade adulta.

 Relatamos, a seguir, algumas vinhetas clínicas:


      Assim como  as  técnicas de reprodução assistida podem  ser usadas de modo a desumanizar, não subjetivar a criação, como pode aparecer  muitas vezes no discurso de inhdivíduos, casais e médicos, onde tudo se reduz a concretude da junção de dois gametas,  pode também  ser de grande ajuda para casais que não conseguem a fecundação natural. Lembramos que tudo depende dos  motivos inconscientes de quem as busca (e oferece). 

         Estas vinhetas clínicas nos suscitam vários questionamentos, exigindo um trabalho psíquico para tentarmos dar conta destes, por serem situações inusitadas, hoje em dia cada vez mais comuns. Ficam alguns pontos para debate e, como cita Freud (1930), no “Mal Estar na Civilização”  




a vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós; proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. A fim de suportá-la não podemos dispensar as medidas paliativas.” (Freud, 1930, p.93



. BIBLIOGRAFIA: 

FREUD (1930). O mal estar na civilização. Standard Edition. V. XXI

GLOCER FIORINI, Letícia. Maternidad sexualidad femenina a la luz de lãs nuevas técnicas reproductivas. Revista de Psicoanalisis – APA – LVI, n.3, 1999.

GLOCER FIORINI, Letícia. El deseo de hijo: de la carência a la produccion deseante. Revista de Psicoanalisis – APA – Tomo LVIII, n.4 – octubre/diciembre de 2001.


MELGAR, Maria Cristina. Procreacion Assistida (natural-artificial) em la cultura contemporânea. Revista de Psicoanalisis – APA – Tomo LII, n. 3, julio-setiembre de 1995.

RIBEIRO, Marina Ferreira da Rosa. Infertilidade e Reprodução Assistida: desejando filhos na família contemporânea. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.

Limites: prazer e realidade nos processos de reprodução assistida

Autores: Grupo Pro Criar. 

Katya de Azevedo Araújo

Mara Horta Barbosa

Maria Isabel Ribas Pacheco

Patricia Poerner Mazeron

Renata Viola Vives



                                      Neste trabalho pretendemos pensar sobre as novas tecnologias de reprodução com o objetivo de abrir um diálogo com as demais áreas do conhecimento, desde o lugar de analistas. Nos sentimos convocadas a criar um espaço de estudo para tentar dar conta das inúmeras indagações que surgem  frente as ilimitadas possibilidades que a biotecnologia proporciona neste campo. O sentimento que surge é de estarmos em um país sem fronteiras onde viajamos sem ponto de chegada. Um ego sem bordas implica risco de transbordamento de ansiedades que conduzem até a psicose. Da mesma forma, toda prática profissional necessita de referenciais  normativos que funcionem como continentes éticos.  Videla(2002) chama a atenção para o fato que a própria noção biológica de limite e finitude é a essência mesma da procriação humana, da idéia da passagem do tempo.

                                 Para abordarmos tão inquietante questão, sobre os limites, diante do incessante desenvolvimento dos recursos tecnológicos para a realização da Reprodução Assistida, buscamos compreender o funcionamento mental a partir da formulação de Freud dos dois princípios: prazer e realidade.O princípio do prazer rege a forma particular de funcionamento de nosso inconsciente, chamado processo primário. O modo de funcionamento consciente, processo secundário, segue outro princípio, o princípio de realidade.

                                 Freud em seu artigo, “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental” (1911), afirma que os neuróticos afastam-se da realidade por achá-la insuportável, seja no todo ou em parte, onde o tipo mais extremo desse afastamento da realidade é apresentado nos casos de psicose.

                    Para Freud (1911) inicialmente o estado de repouso psíquico foi perturbado pelas exigências das necessidades internas. Foi a ausência da satisfação desejada que levou ao abandono das tentativas de satisfação por meio da alucinação. O aparelho psíquico teve de decidir por ter uma concepção do mundo externo. Dessa forma se introduziu um novo funcionamento mental: o princípio da realidade.

“Corretamente objetar-se-á que uma organização que fosse escrava do princípio do prazer e negligenciasse a realidade do mundo externo não se poderia manter viva, nem mesmo pelo tempo mais breve, de maneira que não poderia ter existido de modo algum.” (Freud, 1911, p. 279)

                                 

                                   Esse novo princípio exigiu uma sucessão de adaptações no aparelho psíquico. A realidade externa elevou a importância dos órgãos sensoriais. A consciência aprendeu a abranger qualidades sensórias, indo além das qualidades de prazer e desprazer até então presentes. Foi a introdução do pensar que possibilitou a coibição da descarga motora, que, sob o domínio do princípio do prazer servia como meio  de aliviar o aparelho mental do acúmulo de estímulos. Pensar passou a significar tolerar uma tensão aumentada.O pensar proporcionou ao aparelho psíquico  adiar o processo de descarga.  Entretanto, esse processo não se realiza de imediato, nem implica na substituição de um princípio pelo outro. A dificuldade reside justamente na demora em ensinar a pulsão a considerar a realidade e em como fazê-lo.

                      O ego prazer quer, ao passo que o ego realidade resguarda-se dos danos. Um prazer incerto quanto aos resultados é abandonado, mas em razão de postergar, ao longo de um novo caminho, um prazer mais seguro.

                       Em seu artigo “A perda da realidade na neurose e psicose”( 1924) Freud aborda a dificuldade do id de ceder à realidade, afirmando que tanto a neurose quanto a psicose são justamente expressões de uma rebelião do id contra o mundo externo, por sua incapacidade  de adaptar-se as exigências da realidade, e afirma:



“Chamamos um comportamento de normal ou sadio se ele combina certas características de ambas as reações – se repudia a realidade tão pouco quanto uma neurose, mas se depois se esforça, como faz uma psicose por efetuar uma alteração dessa realidade. Naturalmente, esse comportamento conveniente e normal conduz à realidade do trabalho no mundo externo; ele não se detém, como na psicose, em efetuar  mudanças internas. Ele não é mais autoplástico, mas é aloplástico.”(Freud, 1924, p. 232)



                     Assim sendo, como podemos entender a ação do princípio de prazer – princípio de realidade nos tão atuais procedimentos de reprodução assistida, sejam eles feitos por  indivíduos, casais hetero ou homossexuais, com ou sem doação de gametas?

                                  Existe o predomínio do princípio de prazer em detrimento do princípio de realidade, nos indivíduos, que podem buscar as soluções mais indiscriminadas para a realização do desejo de ter um filho? Ou no uso indiscriminado da tecnologia? Ou em ambos?Onde estão os limites?

                                  Para Videla (1999) é claro que não é a técnica que se aplica que cria o dano, mas  sim como essa é usada e até onde se aplica. Afirma que em qualquer ato terapêutico pode haver uso, mau uso e perda dos limites.

                                  Atualmente no campo da reprodução assistida constatamos avanços fantásticos, com a criação de novas tecnologias e o aprimoramento de outras. Porém, esse avanço tecnológico acaba apontando para uma realidade de que quase tudo é “possíve: é possível um casal heterossexual engravidar, recebendo a doação de óvulos ou de sêmen; é possível um casal homossexual engravidar da mesma forma; é possível  um homossexual doar seus gametas e sua própria mãe gerar seu filho, entre tantas outras possibilidades.

                                  Entendemos que a utilização tecnológica indiscriminada pode levar a um não reconhecimento do sujeito como algo que vai além de um corpo biológico e acabar negando as determinações inconscientes e fantasmáticas do sujeito. As determinações inconscientes têm influência na consolidação e destino da gravidez. Em numerosos casos as dificuldades para engravidar decorrem de vários conflitos com a sexualidade, transtornos identificatórios, entre outros, ou seja, onde as impossibilidades de aceitação da realidade imperem,como no não reconhecimento da castração e onde há falhas constitucionais do recalcamento. Uma vez que é o processo secundário, que põe em marcha o recalcamento.

                               No dia dez de novembro de 2010, o jornal Zero Hora noticiou: “mexicana de 50 anos dá à luz o próprio neto – papéis se confundem para mulher que fez fertilização e pôde tornar pai o filho homossexual.” Foi a própria mulher que ofereceu ao filho gestar o bebê, como retribuição pelo filho ter doado um rim ao pai, alguns anos antes; após muita resistência do filho,  este acabou cedendo, recebendo os óvulos de sua melhor amiga.A mulher diz sentir-se mãe e avó, alegando que nos casos de barriga de aluguel as mulheres resistem em amar o bebê, pois precisam entregá-lo,  diferentemente dela, que acumulará dois papéis.

                               Já à primeira vista o caso chama atenção pelo borramento de limites: mãe ou avó? Mãe e avó? Pai ou irmão? Pai e irmão? Além do fato de haver uma mãe biológica, doadora dos óvulos. Estaríamos diante do incesto? Ou  da capacidade de perceber adequadamente a realidade?

                              O desejo de ter um filho com a própria mãe, ainda que constitua a fantasmática inconsciente (e está ligado a todas as fantasias incestuosas e parricidas)  ou mesmo o desejo de gerar um filho do próprio filho, deveria causar uma sensação de desprazer, quando o   indivíduo encontra-se sob o recalcamento. A condição necessária para haver recalcamento seria que para atingir a meta pulsional se produzisse desprazer ao invés de prazer, ou seja, que a satisfação de uma pulsão fosse transformada em desprazer.

                 No caso citado houve falhas significativas do recalcamento e o princípio de realidade não prevaleceu, parecendo natural àquela dupla (mãe e filho) que pudesse a mãe gerar em seu ventre o próprio neto. A desmentida (desmente a castração do filho anteriormente castrado e desmente o lugar de mãe e avó) encontra-se a serviço do princípio do prazer.

                Freud afirma que pode ocorrer um estímulo proveniente do exterior que se internaliza produzindo uma nova fonte constante de excitação e aumento de tensão. Neste caso, o autor refere-se à dor,  mas podemos supor que uma mãe sedutora que se oferece ao filho à realização do incesto, como alguém que poderá satisfazer o desejo do filho (homossexual) ser pai, pode gerar bastante dor. No exemplo trazido à discussão entendemos que a força do desprazer não é mais forte que o prazer obtido na satisfação, ou seja, falha  o recalcamento.

                            O que passa a ser divulgado na mídia como destaque por um lado, peca na falta de crítica por outro. Percebemos aqui uma dificuldade de reconhecimento de papéis hierárquicos, bem como a dificuldade de abrir mão frente às escolhas feitas. O filho homossexual que quer ser pai. Negação da castração? Da mãe? Do filho? De ambos?  Parece que sim.

               Nesse caso parece que os avanços tecnológicos acabam servindo para incrementar a satisfação imediata sem a mediação do processo do pensar e do reconhecimento das limitações do sujeito, quer dizer, da castração.

                           Aulagnier  (1979)  fala de um desejo de ter filho e de um desejo de maternidade, onde o primeiro teria sido transmitido pela mãe e que esta poderia transmitir a seu filho, ao passo que o desejo de maternidade diria respeito a negação de um desejo pela criança, a uma impossibilidade de investir positivamente o ato de procriação, o momento do nascimento e tudo que prove que ao gerar vida, a mãe criou um novo ser, e não uma criança que é o retorno de uma que já existiu.

“Esta castração, que ocorre bem antes do desejo e do prazer sexuais que a criança poderia reivindicar em seu próprio nome, visa despojar o infans de tudo o que pode designá-lo  como  um existente singular, como prazer e desejo cujo objeto poderia se pretender diferente daquele existente no passado materno.” (Aulagnier, 1979, p. 187)
 

                            Lembremos, porém, que a negação da castração pode se dar numa gestação natural, não é exclusiva do processo de fertilização assistida, mas sim da subjetividade de quem a busca e de quem a coloca em ação  e de quem a oferece como recurso da ciência.  Por essa razão, é necessário antes de enfrentar um processo de reprodução assistida,  fazermos uma indagação face ao desejo inconsciente de quem busca este recurso e que nos permite saber em que casos o recurso/ técnica resultará em benefício.

                              Sigal (2003) sugere que  antes de condenar estas mulheres, às quais os psicanalistas olham com desconfiança, por se proporem a serem assistidas frente ao intenso desejo de ter um filho, escutemos cuidadosamente seu desejo inconsciente sem preconceito, sem considerar a priori uma perversão altruísta.

                             Para a mesma autora, se a feminilidade está afirmada, se o homem tem um espaço para o desejo da mulher, se há um desejo do homem de ter esse filho, se o filho não está investido da qualidade fetiche, se este objeto-filho da pulsão atual não vem ocupar o lugar do objeto fálico da sexualidade infantil, mesmo tendo que realizar um caminho mais difícil, é possível alcançar a maternidade  saudável psiquicamente por vias da fecundação in vitro.

                         Apoiadas na teoria freudiana e procurando relacionar com a clínica queremos salientar que o desejo por um filho deve partir de um reconhecimento de que este não deve vir para satisfazer auto-eroticamente sua mãe, ou seus pais, mas sim completar aspectos faltosos reconhecidos nestes. Atravessados pela castração e reconhecimento da necessidade de um outro para procriar, vão poder reconhecer a sua cria como um outro, um ser desejante também e independente.

            Quando o indivíduo não está disposto a renunciar à perfeição narcisista de sua infância ou quando ao crescer se vê perturbado por admoestações de terceiros e pelo despertar do próprio julgamento crítico, pode passar a funcionar buscando seu narcisismo de outrora perdido de sua infância, procurando ser seu próprio ideal. Então quando os recursos da tecno-ciência acabam contemplando desejos narcísicos, onde predomina a ausência do reconhecimento do outro, do não reconhecimento do sujeito atravessado pela castração nos deparamos com o princípio do prazer falando mais alto que a lei da realidade e portanto, estamos diante da psicopatologia.    



Referências Bibliográficas:

AULAGNIER, Piera. A Violência da Interpretação. Imago: 1979.

FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Formulações sobre os dois Príncipios  do Funcionamento Mental(1911),volume XII. Rio de Janeiro: Imago Editora,1996.

FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Repressão (1915). Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996.

FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.A perda da realidade na neurose e psicose. (1924), v. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996.

SIGAL, 

VIDELA,